segunda-feira, 5 de agosto de 2019

TertúliaView: Quanto Vale ou É por Quilo? (2005) de Sérgio Bianchi


“Esse é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era bem assim. Só que ela durava dois meses e o principal: o navio ia terminar em algum lugar. Na escravidão a gente era tudo máquina, tudo máquina. Dai eles pagavam combustível e manutenção para que a gente tivesse saúde para poder trabalhar de graça para eles. Agora não. Agora é diferente. Agora a gente é escravo sem dono. Cada um aqui custa uns 700 paus para o Estado, por mês. Isso é mais que três salários mínimos. Isso diz alguma coisa sobre esse país. O que vale é ter liberdade para consumir. Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia.”

+ Quanto Vale ou É por Quilo? (2005) de Sérgio Bianchi

Poster do filme

A fala apresentada acima é do personagem Dido (Lázaro Ramos), que está em uma cela lotada, evidenciando de maneira absoluta quais são as intenções do filme, que não são nada agradáveis de se ver ou ouvir, ou melhor, de se perceber que essa é a nossa realidade social.

CENA DA FALA INICIAL


Dido (Lázaro Ramos)
Impossível não fazer relações com outras obras de Sérgio Bianchi, pois as relações desiguais e violentas são exploradas em quase todos seus filmes, como Cronicamente Inviável de 2000, em que conhecemos uma análise também destruidora da sociedade brasileira, que seria algo extremamente difícil de se construir uma crônica, mas é o que Bianchi decide fazer com a obra, que já começa de maneira diferente, mostrando uma cena na qual pessoas comem uma comida que acabou de ser jogada no lixo por um restaurante, logo em seguida se ouve uma voz: "não, isso está muito explícito, vamos refazer", mas o filme não perdoa, apresenta assaltos, miséria, devastação do meio ambiente, violência policial. Quanto Vale ou é por Quilo? se mostra como uma nova tentativa de apresentar uma crônica social brasileira, exercício também complexo, mas agora se concentrando nas relações raciais herdadas do período escravocrata no Brasil. 

Cena de Cronicamente Inviável
Conhecemos uma narrativa costurada entre o século XVIII no Brasil colonial com a atualidade brasileira e um discurso forte sobre como diversas relações de poder ainda se sustentam hoje, o filme utiliza os mesmo atores no passado e no presente, evidenciando de maneira clara como essa sociedade não conseguiu construir uma lógica de cidadania, mas somente construiu novos espaços para exploração e lucro da classe rica e branca sobre a classe mais baixa e negra. Entre escravocratas sustentando a exploração e pessoas lucrando com a liberdade de escravizados no período colonial, exibe um panorama atual em que conhecemos ONGs que, em seus discursos, trabalham por lutar contra a desigualdade social, mas, na prática, apenas sustentam a desigualdade racial brasileira, desde superfaturamento até exploração de corpos negros. Construindo uma das bases do chamado "crime perfeito" do antropólogo Kabengele Munanga, que diz em uma entrevista à Revista Forúm em 2012 [1].

“Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995 [2], perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: ‘você já discriminou alguém?’. A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas. Ele está no ar… Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage: ‘você que é complexado, o problema está na sua cabeça’. Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.”

Kabengele Munanga – Foto: U. Dettmar/SCO/STF
FONTE: bit.ly/2XWaQ10

Nesse momento chegamos a um entrave dentro da sociedade brasileira, como combater o racismo e a desigualdade se não há culpados? Como questionar a falta de inserção social se há tantas organizações que em seus discursos defendem tal bandeira? Compreendemos então que Bianchi constrói uma narrativa consciente disso e evidencia de maneira feroz como nós mesmo somos reprodutores dessa hipocrisia. Numa sociedade em que as liberdades e a cidadania se resumem em direito ao consumo, os negros e negras que foram libertos(as) em 1886 com a Lei Áurea, agora lidam com uma sociedade estruturalmente racista, qualquer questionamento sobre a desigualdade racial será um questionamento de como a sociedade se estrutura.

“Temos cerca de 10 mil crianças abandonadas nas ruas. Se pegássemos os 100 milhões de dólares, quantia estimada da movimentação financeira das entidades que atendem os menores carentes e dividíssemos pelo número estimado de crianças, que são 10 mil. Cada uma delas receberia 10 mil dólares por ano. Com esse dinheiro seria possível comprar um apartamento de quarto e sala para cada criança a cada dois anos. Ou ainda pagar estudos em escolas da rede particular até a faculdade.”

Nesse momento vemos que a desigualdade racial não é algo que está sendo combatido pelas entidades que dizem combater, mas que na verdade se utilizam do racismo para poderem lucrar com essa triste realidade. Assim como é apresentada na história da negociante de escravizados(as) Maria Antônia do Rosário e da escravizada Lucrécia, que em tese auxiliou Lucrécia a conseguir sua liberdade da família Pereira Cardoso, pois do Rosário paga sua alforria, mas exige uma determinada taxa de juros por ano em troca. Como conclusão vemos que Maria Antônia não buscava a liberdade de Lucrécia, mas a "ajudou" apenas para conseguir seus lucros. Relato extraído do Arquivo Nacional, RJ. Um relato extremamente semelhante na fala descrita acima em nossa atual sociedade.

Lucrécia e Maria Antônia do Rosário
Nesse momento passamos a se questionar como uma sociedade democrática e dita cidadã. Mudamos? Nossas relações de poder ainda são as mesmas? Os negros e negras possuem reais possibilidades de inserção social? Tudo ainda gira em torno do lucro e do consumo? É triste responder tais perguntas utilizando fatos históricos e reais apresentados no filme. 

Complementando a obra de Bianchi, podemos citar o documentário A Última Abolição, 2018 de Alice Gomez em que vemos a fala do historiador João José Reis [3]:

“Eu vou dizer uma coisa que pode ser chocante. Os escravos estavam muito mais protegidos do que os nossos jovens negros. Porque eles eram propriedade, eles tinham que ser preservados, eles precisavam ser alimentados. Os senhores brigavam quando a polícia batia nos seus escravos. Porque era deles, os senhores, a prerrogativa de puni-los. Eles não queriam intervenção. [...] Hoje os jovens negros não têm senhores para protegê-los. Não estou pregando o retorno da escravidão, fique bem claro. Mas o que eu estou dizendo aqui é o que acontece hoje é uma tragédia tão grande que nos permite fazer esse tipo de comparação esdrúxula como eu estou fazendo. É uma calamidade.”

TRAILER DE "A ÚLTIMA ABOLIÇÃO"

 Talvez nossa função como tertulianxs seja algo extremamente inviável ou que seja apenas para reconhecer uma realidade triste da atual condição social brasileira. Mas devemos tentar agir como o cineasta Sérgio Bianchi, mesmo que seja algo cronicamente inviável ou extremamente difícil de reconhecer, ele fez. Nos resta reconhecer o cinema como um espaço de conscientização, indo muito além da simples veneração pelas obras cinematográficas, trabalhando debates sobre ética e responsabilidade para que nos tornemos agentes conscientes dos impactos que o cinema pode realizar e não apenas um tipo de Maria Antônia do Rosário, em que lucramos com a desigualdade racial e social brasileira. 

TRAILER LEGENDADO



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[2] Pode ser conferida no endereço < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/25/opiniao/1.html>. Acessado 28.05.2019.
[3] Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=TcK-Ta0drLU> Acessado em 28.05.2019.

+ bit.ly/QuantoValeSuaInsanidade
#AcrediteNaGravata #QuantoValeOuÉPorQuilo? #SérgioBianchi #EncarceramentoEmMassa #Racismo #Escravidão #LázaroRamos #CronicamenteInviável #ONG #KabengeleMunanga #LeiÁurea #DesigualdadeRacial #Cidadania #AÚltimaAbolição

segunda-feira, 22 de julho de 2019

TertúliaView: Chernobyl (2019) por Craig Mazin


Nas infinitas correrias na vida de um professor a mais prazerosa é trocar uma ideia de boas com seus/suas estudantes... Sério! É muito bom mesmo! Nesse ano um aluno me recomendou dois filmes sobre a Segunda Guerra Mundial: “Corações de Ferro” (2014) de David Ayer e “Até o Último Homem” (2016) de Mel Gibson... Consegui assistir aos dois filmes e como conclusão: QUE BOSTA! Uma narrativa repleta de construção de heróis, inocência forçada e luta em nome da "liberdade"... Ok! Nunca fui a nenhuma guerra e nem tenho isso como um objetivo. Mas tenho certeza que dentro do ambiente de guerra a preocupação por atos heroicos é muito raro! Então por que raios existem tantas obras com essa narrativa?

+ Chernobyl (2019) por Craig Mazin

Poster da série
Na intensa febre por novos audiovisuais no formato de séries, surgem gigantes no ramo, que não perdoam gastos para trazer as representações mais intensas possíveis ao seu público. Surgem as séries em streaming da Netflix e do Prime Video com investimentos gigantescos. Mas existem uma que já “mete o loco” desde a década de 1970, a HBO, que tem em seu catálogo "Roma", "Band of Brothers", "The Sopranos" e que atualmente tem séries insanas como "Westworld" (já tertuliado por aqui) e "Game of Thrones". Nesse campo frutífero de séries “de responsa” surge em 2019 a minissérie “Chernobyl” que está fazendo todo mundo passar mal durante os episódios de tanta realidade explorada de forma bruta e seca. 

Stellan Skarsgård e Jared Harris
Acredito que a primeira reação a essa série é a pergunta: isso tudo aconteceu assim mesmo? Então caímos na clássica questão do quão fiel é o filme para com a obra original ou a realidade representada. Sobre esse assunto temos uma interessante matéria do Jornal Nexo, que apresenta de forma detalhada a relação entre os fatos e as ficções da série cirando por Craig Mazin. Logo acho muito perda de tempo (ou de brisa) se fixar nesse ponto, ao mesmo tempo que seria muito “pedância” da minha parte ficar detalhando datas e nomes reais por aqui.

Ulana Khomyuk (Emily Watson)
Mas acredito que o mais INSANO dessa série é a sua narrativa, que sim, é política! Lembre-se carx amiguinhx tertulianx, TUDO É POLÍTICA! Ou como diria a grande escritora polonesa Wisława Szymborska: “Todas as tuas, nossas, vossas coisas / diurnas e noturnas, / são coisas políticas.

Wisława Szymborska
A série apresenta uma cena extremamente importante em seu quarto episódio, em que um grupo de três soldados são responsáveis por matar animais que foram abandonados por seus/suas donxs. Um deles questiona o mérito e a honra de matar algum ser vivo: NÃO EXISTE! E o pior, você terá que conviver com isso para o resto da vida, pois você não se transforma em outra pessoa após isso, você tem que conviver com isso sendo você mesmo! Essa moral de não apresentar heróis, de mostrar uma história crua e fria é algo que poucas narrativas históricas têm moral de encarar, ainda mais uma história recente (sim, recente! O acidente foi em 1986).

CENA COMPLETA

 Mas ao mesmo tempo que a série tem esse ponto positivo, tem seu ponto negativo, pois é uma série dos Estados Unidos, o grande rival da União Soviética durante boa parte do século passado. Apresentar tal história como uma tragédia triste e sem heróis é algo até fácil quando você está a fim de falar mal do seu inimigo que atualmente (com o nome de República do Putin... quer dizer, Rússia) está desempenhando ações políticas muito semelhantes do período da Guerra Fria.

Jessie Buckley
Nessa hora devemos seguir a primeira regra de um historiador quando se volta para um documento: REGRA 1: Você não fala sobre o Clube da Lut... Ops, quer dizer! Você questiona sobre o contexto histórico do objeto que você está analisando. Saca essa sequência de notícias sobre a influência da política da Rússia pelo mundo: “A Rússia está realizando o maior exercício militar da sua história” e “Presidente americano e cinco de seus assessores são criticados por supostas ligações indevidas com Moscou”. Acho que a Rússia está se comportando muito mal nesses últimos tempos, hein! Hora de fazer o que os Estados Unidos fazem de melhor: filmes para garantir a opinião “correta” sobre fatos históricos!

Trump e Putin
Podemos até citar a série da Netflix, "Os Últimos Czares" que dividiu opiniões entre o público ocidental e oriental (clique aqui), construindo uma narrativa em que mesmo com a fama de “O sanguinário” de Nicolau II, temos a maior simpatia por ele e por sua família, tornando os bolcheviques como os grandes vilões da história russa. Mas isso é coisa pra uma outra #TertúliaView!

Cena de The Last Czars

Está com dúvidas sobre as razões políticas nessas narrativas? Saca só esse trecho aqui: “Com o sucesso da minissérie produzida pelos canais HBO e Sky, a televisão estatal russa anunciou que está trabalhando em sua própria série sobre o que aconteceu. A TV assegurou que a série será baseada em fatos históricos e mostrará como a CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) teve envolvimento no desastre. O diretor, Aleksey Muradov, afirmou que mostrará ‘o que realmente aconteceu na época’." (leia a matéria completa aqui)

Cena de Chernobyl
Muitos podem afirmar o discurso do último episódio do personagem Valery Legasov (Jared Harris) seja algo essencial para finalizar essa disputa, mas convenhamos... Essa fala é especificamente voltada para a atual Rússia! Nessa brisa de finalizar o texto aqui quero retornar a triste e pessimista visão de Bacho (Fares Fares), “Não há histórias boas como nos filmes”. Os resultados de conflitos e guerras já sabemos, não precisamos de novas disputas e tensões entre as mesmas nações para ver se os resultados podem ser diferentes, os finais felizes existem apenas nas ficções. Não serão com filmes de heroísmo como os que foram citados ao início que irão mudar o que aconteceu de fato, mas com narrativas sinceras como essa, independentemente se o país representado seja o inimigo, um aliado ou o seu. Utilizando a fala de Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), "um mundo justo é um mundo são", será que temos um mundo são atualmente?

TRAILER LEGENDADO
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+ bit.ly/ChernobylDaInsanidade
 #Chernobyl #Miniseries #CraigMazin #Drama #History #JohanRenck #StellanSkarsgård #JaredHarris #EmilyWatson #JessieBuckley #HBO #URSS #CCCP #SovietUnion #ColdWar

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Cine Tertúlia no MUMBI

Olá camaradas e camarados, sim sabemos que estamos bem por fora de atualizações no presente blog do Cine Tertúlia, mas queremos lhes comunicar que o mesmo se encontra atualmente na forma de cineclube dentro do Museu Memória do Bixiga. Nossa "primeira" experiência nesse retorno a nossa forma mais clássica, como um cineclube, não poderia ter outra palavra chave a não ser #INSANO.

Olha só a animação da criançada!
Nesse retorno ao MUMBI pautamos por apresentar uma versão resumida dos nossos projeto e REVOLUÇÃO GLOBAL e nos voltamos para três audiovisuais, se focando com a condição situada do espaço, logo o debate da memória não deveria ficar de fora daquela #INSANA tertúlia.

Só nas "fotrogafias" estilo Raça Negra
O primeiro vídeo foi uma reportagem de 2010 do Jornal da Gazeta sobre o lugar, assim já começamos a levantar questionamentos sobre a própria ideia de memória, com uma reportagem de quase 10 anos atrás. Sendo assim, a pauta da identidade do bairro e/ou museu também foi refletida: será que o bairro ainda é de italianos somente? Novas identidades não foram forjadas nesse processo de relação entre outsiders e estabelecidos, como diria Norbert Elias?

Museu do Bixiga - 22/03/2010


Com esse panorama inicial apresentado fomos para debater o processo de formação de memória, que é forjado e disputado entre muitos grupos em sociedade e pautamos aqui para comparar duas propagandas dos 150 anos da Caixa Econômica Federal, em que fizeram uma construção do personagem Machado de Assis, mas num primeiro momento com um ator branco. Claro que esse discurso apresentado levantou muitas críticas na sociedade e resultou numa nova construção do escritor, agora negro.

PROPAGANDA CAIXA
MACHADO DE ASSIS BRANCO

MACHADO DE ASSIS NEGRO

Reservamos a "pior" parte (leia-se MAIS INSANA) para o fim. Com #INSANO curta metragem de ninguém menos que David Cronenberg: "CAMERA". Em conhecemos as declarações pessoais de uma antigo ator de cinema e mostrando sua relação extremamente ambígua com o cinema, desde felicidade até como um veneno que sugada todas as suas energias. Nesse momento estabelecemos um norte final para refletir sobre como o tempo influencia em nossas opiniões e identidades.

CINEMA (2000) de Cronenberg

Assim finalizamos um empreitada muito significativa, em busca de reafirmação e #INSANIDADES, ao lado do MUMBI esperamos construir debates que garantam cada vez mais a importância da memória. Agradecemos a todxs que apareceram no dia 09/02 de 2019 e esperamos novas empreitadas #INSANAS para o dia 16/02. LINK DO EVENTO: goo.gl/Zbuqna.

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