“Esse
é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era bem assim. Só que ela durava
dois meses e o principal: o navio ia terminar em algum lugar. Na escravidão a
gente era tudo máquina, tudo máquina. Dai eles pagavam combustível e manutenção
para que a gente tivesse saúde para poder trabalhar de graça para eles. Agora
não. Agora é diferente. Agora a gente é escravo sem dono. Cada um aqui custa
uns 700 paus para o Estado, por mês. Isso é mais que três salários mínimos.
Isso diz alguma coisa sobre esse país. O que vale é ter liberdade para
consumir. Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia.”
+ Quanto Vale ou É por Quilo? (2005) de Sérgio Bianchi
Poster do filme |
A fala apresentada acima é do
personagem Dido (Lázaro Ramos), que está em uma cela lotada,
evidenciando de maneira absoluta quais são as intenções do filme, que não são
nada agradáveis de se ver ou ouvir, ou melhor, de se perceber que essa é a
nossa realidade social.
CENA DA FALA INICIAL
Dido (Lázaro Ramos) |
Impossível não fazer
relações com outras obras de Sérgio Bianchi, pois as relações desiguais e
violentas são exploradas em quase todos seus filmes, como Cronicamente Inviável de 2000, em que conhecemos uma análise também
destruidora da sociedade brasileira, que seria algo extremamente difícil de se
construir uma crônica, mas é o que Bianchi decide fazer com a obra, que já
começa de maneira diferente, mostrando uma cena na qual pessoas comem uma
comida que acabou de ser jogada no lixo por um restaurante, logo em seguida se
ouve uma voz: "não, isso está muito explícito, vamos refazer", mas o
filme não perdoa, apresenta assaltos, miséria, devastação do meio ambiente,
violência policial. Quanto Vale ou é por
Quilo? se mostra como uma nova tentativa de apresentar uma crônica social
brasileira, exercício também complexo, mas agora se concentrando nas relações
raciais herdadas do período escravocrata no Brasil.
Conhecemos uma narrativa
costurada entre o século XVIII no Brasil colonial com a atualidade brasileira e
um discurso forte sobre como diversas relações de poder ainda se sustentam hoje,
o filme utiliza os mesmo atores no passado e no presente, evidenciando de
maneira clara como essa sociedade não conseguiu construir uma lógica de
cidadania, mas somente construiu novos espaços para exploração e lucro da
classe rica e branca sobre a classe mais baixa e negra. Entre escravocratas
sustentando a exploração e pessoas lucrando com a liberdade de escravizados no
período colonial, exibe um panorama atual em que conhecemos ONGs que, em seus
discursos, trabalham por lutar contra a desigualdade social, mas, na prática,
apenas sustentam a desigualdade racial brasileira, desde superfaturamento até
exploração de corpos negros. Construindo uma das bases do chamado "crime
perfeito" do antropólogo Kabengele Munanga, que diz em uma entrevista à Revista
Forúm em 2012 [1].
“Quando
a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995 [2],
perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80%
disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: ‘você já discriminou
alguém?’. A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas.
Ele está no ar… Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a
dizer ao negro que reage: ‘você que é complexado, o problema está na sua
cabeça’. Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de
crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é
que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.”
Kabengele Munanga – Foto: U. Dettmar/SCO/STF FONTE: bit.ly/2XWaQ10 |
Nesse momento chegamos a um entrave dentro da sociedade brasileira, como combater o racismo e a desigualdade se não há culpados? Como questionar a falta de inserção social se há tantas organizações que em seus discursos defendem tal bandeira? Compreendemos então que Bianchi constrói uma narrativa consciente disso e evidencia de maneira feroz como nós mesmo somos reprodutores dessa hipocrisia. Numa sociedade em que as liberdades e a cidadania se resumem em direito ao consumo, os negros e negras que foram libertos(as) em 1886 com a Lei Áurea, agora lidam com uma sociedade estruturalmente racista, qualquer questionamento sobre a desigualdade racial será um questionamento de como a sociedade se estrutura.
“Temos
cerca de 10 mil crianças abandonadas nas ruas. Se pegássemos os 100 milhões de
dólares, quantia estimada da movimentação financeira das entidades que atendem
os menores carentes e dividíssemos pelo número estimado de crianças, que são 10
mil. Cada uma delas receberia 10 mil dólares por ano. Com esse dinheiro seria
possível comprar um apartamento de quarto e sala para cada criança a cada dois
anos. Ou ainda pagar estudos em escolas da rede particular até a faculdade.”
Nesse momento vemos que a
desigualdade racial não é algo que está sendo combatido pelas entidades que
dizem combater, mas que na verdade se utilizam do racismo para poderem lucrar
com essa triste realidade. Assim como é apresentada na história da negociante
de escravizados(as) Maria Antônia do Rosário e da escravizada Lucrécia, que em
tese auxiliou Lucrécia a conseguir sua liberdade da família Pereira Cardoso,
pois do Rosário paga sua alforria, mas exige uma determinada taxa de juros por
ano em troca. Como conclusão vemos que Maria Antônia não buscava a liberdade de
Lucrécia, mas a "ajudou" apenas para conseguir seus lucros. Relato extraído do
Arquivo Nacional, RJ. Um relato extremamente semelhante na fala descrita acima
em nossa atual sociedade.
Lucrécia e Maria Antônia do Rosário |
Nesse momento passamos a se questionar como uma sociedade democrática e dita cidadã. Mudamos? Nossas
relações de poder ainda são as mesmas? Os negros e negras possuem reais
possibilidades de inserção social? Tudo ainda gira em torno do lucro e do
consumo? É triste responder tais perguntas utilizando fatos históricos e reais
apresentados no filme.
Complementando a obra de
Bianchi, podemos citar o documentário A Última Abolição, 2018 de Alice Gomez em que vemos a fala do historiador
João José Reis [3]:
“Eu
vou dizer uma coisa que pode ser chocante. Os escravos estavam muito mais
protegidos do que os nossos jovens negros. Porque eles eram propriedade, eles
tinham que ser preservados, eles precisavam ser alimentados. Os senhores
brigavam quando a polícia batia nos seus escravos. Porque era deles, os
senhores, a prerrogativa de puni-los. Eles não queriam intervenção. [...] Hoje
os jovens negros não têm senhores para protegê-los. Não estou pregando o
retorno da escravidão, fique bem claro. Mas o que eu estou dizendo aqui é o que
acontece hoje é uma tragédia tão grande que nos permite fazer esse tipo de
comparação esdrúxula como eu estou fazendo. É uma calamidade.”
TRAILER DE "A ÚLTIMA ABOLIÇÃO"
Talvez nossa função como tertulianxs seja algo extremamente inviável ou que seja apenas para reconhecer uma realidade triste da atual condição social brasileira. Mas devemos tentar agir como o cineasta Sérgio Bianchi, mesmo que seja algo cronicamente inviável ou extremamente difícil de reconhecer, ele fez. Nos resta reconhecer o cinema como um espaço de conscientização, indo muito além da simples veneração pelas obras cinematográficas, trabalhando debates sobre ética e responsabilidade para que nos tornemos agentes conscientes dos impactos que o cinema pode realizar e não apenas um tipo de Maria Antônia do Rosário, em que lucramos com a desigualdade racial e social brasileira.
TRAILER LEGENDADO
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[1] Disponível
em <https://www.revistaforum.com.br/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito>
Acessado em 28.05.2019.
[2]
Pode ser conferida no endereço < https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/6/25/opiniao/1.html>.
Acessado 28.05.2019.
[3] Disponível
em <https://www.youtube.com/watch?v=TcK-Ta0drLU>
Acessado em 28.05.2019.
+ bit.ly/QuantoValeSuaInsanidade
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