Apesar de ser um filme de ficção-científica e fantasia, ele retrata temas que são muito atuais e vêm sendo muito discutidos ultimamente, como o autoritarismo e o fascismo.
+ O Doador de Memórias (The Giver, 2014) de Phillip Noyce
ESCRITO POR PAMELLA
pamella006@gmail.com
No filme as pessoas não tem liberdade nenhuma, e tudo (as casas, cores, roupas, etc.) é padronizado, os anciões acreditam que essa privação de liberdade e padronização seja necessária para que não haja, guerras, desigualdade, fome, peste, etc, então cria-se esta sociedade considerada por eles ideal. Coloquei essa ideia de uma sociedade totalitária (talvez até neofascista) justamente porque as pessoas não têm liberdade alguma e são controladas pelo governo local, o Estado controla a liberdade e vida individual de cada um e ninguém questiona, e nem pode questionar, a autoridade do líder (os anciões no caso). Então com isso conseguimos perceber o quanto seria ruim viver numa sociedade com um líder totalitário pois não teríamos liberdade individual e não poderíamos questionar isso.
Jonas (Brenton Thwaites) e Fiona (Odeya Rush)
Pensando num momento não tão distante na história da humanidade, podemos relacionar o enredo do filme com o período do Renascimento. Quando o personagem Jonas faz com que a personagem Fiona pare de injetar os medicamentos para ter emoções e sentimentos e quando ele faz com que as memórias voltem para as pessoas e as “libertem” de toda a autoridade e manipulação do governo local, podemos relacionar com o Renascimento e/ou Iluminismo, quando houve a mudança de Idade Média para Moderna e então começou a existir mais liberdade de pensamento, que antes não tinha por causa da atuação da Igreja Católica. O filme pode ser considerado uma obra política e social. Ele retrata uma sociedade em que as pessoas não conhecem a liberdade e então não questionam o que está acontecendo, é isso acontece por causa do regime de governo totalitário em que vivem.
Doador (Jeff Bridges) e Jonas (Brenton Thwaites)
Para compreender um determinado período histórico, seja o do Renascimento, Iluminismo, ascensão do Fascismo, ou mesmo o período atual que vivemos aqui no Brasil, é muito bom que tenhamos filme desse tipo, pois além de ser um entretenimento, ele ajuda a compreender o que está acontecendo ou o que já aconteceu. O filme retrata uma distopia mas que se observarmos bem o que está sendo retratado, é fiel aos fatos em questão de opressão, manipulação e privação de liberdade. Um filme para que haja um entendimento claro deve haver esse caráter distópico.
Cameron Monaghan (Asher), Fiona (Odeya Rush) e Jonas (Brenton Thwaites)
Observando agora o contexto em que vivemos neste momento, podemos ver no atual presidente brasileiro (evitamos citar nomes de fascistas) algumas dessas características autoritárias, como quando algum ministro tem divergências com ele mesmo que essas divergências sejam corretas e benéficas para o país no momento, ele simplesmente o demite, isso em meio a uma pandemia, ou quando ele participa de atos a favor do fechamento do congresso e do STF, e da volta do AI-5, o ato institucional mais duro da Ditadura Militar no Brasil e também quando ele tem falas como “Eu sou a Constituição”, nos fazendo pensar sobre a sociedade em que vivemos.
O filme nos conta a história de Elizabeth I (1533-1603), rainha da Inglaterra que tinha como religião o protestantismo, que vem ser o principal motivo de todo o clímax do filme devido a religião instaurada em todo o restante da Europa, o catolicismo. Todo o enredo trata de um embate entre Elizabeth I e Filipe II, rei da Espanha e homem fiel à Igreja Católica que tinha como principal objetivo tornar toda a Europa católica.
+ Elizabeth: A Era de Ouro (Elizabeth: The Golden Age, 2007) de Shekhar Kapur
Como o próprio título dá a entender, a obra se centra completamente na rainha, ou seja, em sua vida, sentimentos, emoções e tudo ao seu redor, retirando então o foco de muitas outras coisas importantes que poderiam ter tomado mais do que alguns simples minutos do filme. Tudo ocorreu muito rápido, situações que aconteceriam em mais que alguns minutos, aconteceram em segundos, o autor da longa preferiu priorizar coisas fantasiosas, como o romance platônico da rainha para com o Walter Raleigh, ou a traição de sua protegida ao se relacionar, engravidar e casar com o próprio Walter, do que, acredito eu, momentos mais esperados por todos, de mais emoção, como o "assassinato" da rainha, ou todo o plano da Espanha para derrubar a Inglaterra, ou até mesmo a guerra santa, embate entre a Inglaterra e a Espanha, que durou apenas alguns minutos finais da obra. O povo, o lado da Espanha na história de um ponto mais específico, Mary Stuart (a rainha encarcerada), a contra reforma, a guerra, Filipe II e o protestantismo da Inglaterra, foram alguns dos pontos que poderiam ter sidos mais explorados no filme.
Elizabeth I (Cate Blanchett)
A monarquia absolutista, a reforma protestante e a contra reforma deram lugar ao filme em algumas cenas; Elizabeth era uma rainha reverenciada por todos, dava ordens e todos a obedeciam, em uma parte do filme, ela diz coisas parecidas com "Por que está me olhando no olho? Eu sou a rainha, você nunca foi igual a mim, e nunca será" ou "A lei não deve ser exercida quando se trata de reis ou rainhas", ou seja, todo o poder estava em suas mãos; outros momentos nos mostram a rainha, e até mesmo algumas de suas servas orando em um local do castelo cheio de velas, porém sem nenhuma imagem sagrada, dando a entender que o protestantismo era presente naquele reinado, ela mesmo diz isso algumas vezes, e o filme apresenta isso logo ao início dizendo que a Inglaterra era o único país que não seguia o catolicismo; a rainha também consulta uma espécie de astrólogo para saber coisas de seu reinado e de sua vida pessoal, o que faz com que pensemos que outras crenças religiosas também eram permitidas lá. E por fim, a contra reforma, que é a questão principal do filme e o que dá mais emoção ao mesmo, o rei Filipe II forja um plano e o põe em ação para que a rainha e seu reinado fossem destruídos e toda a Europa se tornasse católica, pois segundo ele, Elizabeth e a Inglaterra estavam sendo comandadas pelo demônio, sendo assim, seu principal objetivo era ir contra a reforma, era abolir o protestantismo de uma vez por todas.
Essa obra pode ser considerada tanto política quanto religiosa, pois bem, como já disse anteriormente, todo o filme se passa em uma guerra santa contra católicos e protestantes pelo poder. Por outro lado, creio eu que essa guerra também tinha interesse político devido a derrota de um reinado e a dominação de um reino, em uma cena específica Filipe II pergunta para sua filha se ela gostaria de ser rainha da Inglaterra, sendo assim, o interesse do mesmo não era apenas impor o catolicismo na Inglaterra, mas sim a possuir e ter total domínio sobre a própria. Em outra cena do filme alguns pretendentes são mostrados a rainha, sendo eles príncipes de outros reinos, ou seja, não se trata de amor e sim de aliança política, fortificação e união de reinos. Em total resumo, a religião e a política andam lado a lado em cada um dos momentos, um seguido ou encoberto do outro.
Elizabeth I (Cate Blanchett)
Walter dizendo a rainha que nunca tinha visto ela sentir medo, e ela, logo em seguida dizendo que todos sentem medo; a rainha dizendo a sua serva: "Invejo-te Bess, és livre de ter aquilo que eu não posso"; O plano de Filipe II sendo descoberto pelo servo da rainha e pela mesma, ou seja, a rainha assassinou Mary Stuart totalmente em vão; a fala que Walter diz para a rainha Elizabeth, sendo ela "nós mortais temos muitas fraquezas, muito sentimento, morremos... mas temos a chance de amar"; a rainha se mostrando totalmente empoderada e dizendo para que o embaixador da Espanha dissesse a Filipe II que ela não tem medo dele, nem dos exércitos dele; a rainha vestida com uma armadura dando um discurso ao seu povo dizendo que os exércitos da Espanha não passarão, e que independente do que acontecesse, eles estariam juntos; a reação de Filipe II logo depois de saber que foi derrotado, e sua oração a Deus dizendo mais ou menos: "Deus tira Tua irá de cima do Teu povo, Sua vontade foi feita, fomos derrotados", o que fez com que todos os seus pensamentos sobre a Inglaterra estar agindo contra Deus caíssem por terra; e por fim, a cena de todas as navegações da Espanha pegando fogo ao mar enquanto a rainha vê tudo acontecer de cima de um penhasco, foram algumas das cenas e frases mais marcantes de todo o enredo da longa.
Bess Throckmorton (Abbie Cornish) e Elizabeth I (Cate Blanchett)
O filme nos ajuda muito a compreender o que ocorreu naquele período histórico, pois apesar de ter muita fantasia, ele também nos mostra acontecimentos reais em seu enredo, dando a entender que a intenção do autor era fixar nossa atenção com o impasses da vida pessoal da rainha, mas ao mesmo tempo nos ensinar com as situações que aconteciam ao redor da mesma, ou seja, a obra apresenta uma junção de fantasias e fatos, não sendo apenas uma longa para instruir, mas também para no prender, encantar e nos fazer sentir diversas emoções, ou seja, resumindo, em meu ponto de vista, todo tipo de obra artística relacionada à algum fato histórico nos ajuda sim a entender melhor tudo o que se passa no mesmo. O nosso contexto histórico atual, ao meu ver se qualifica apenas com algumas situações do filme, como o direcionamento da política por meio da religião, tendo então a intervenção da igreja em questões do governo, ou até mesmo a perseguição de uma crença para com outras, o interesse de um país em dominar outros, e etc.
Bess Throckmorton (Abbie Cornish) e Walter Raleigh (Clive Owen)
O que mais me intrigou para ver esse filme foi o título e a sinopse do mesmo, primeiramente por ter como personagem principal uma rainha mulher, segundo por ser um assunto no qual eu já tenho um pouco de conhecimento, ou seja, eu imaginei que seria de melhor compreensão; porém um dos principais motivos que me deixou interessada na obra é o embate entre uma rainha protestante e uma rei católico. Resumindo num todo, eu gosto muito de filmes baseados em fatos históricos, sendo assim, o filme de Elizabeth I me encantou de primeira.
O filme A Vida de Brian, produzido no Reino Unido pelo diretor Terry Jones é com certeza uma das melhores e mais mirabolantes obras que utiliza-se do humor para fazer diversas críticas sociais que já vi em toda a minha vida.
+ A Vida de Brian (Monty Python's Life of Brian, 1979) de Terry Jones
TEXTO ESCRITO POR RICARDO
paccientexd@gmail.com
Voltado para o gênero da comédia, o filme trabalha constantemente com o humor irônico e com diversas situações contraditórias que ocorrem durante a trama, nos fazendo em diversos momentos parar para refletir profundamente sobre várias questões sociais presentes na época (33 D.C na Judéia), e em como é bizarro notar que essas questões — que apesar de estúpidas e primitivas — ainda se encontram em grande presença na nossa atual sociedade.
Girando em torno do icônico — e um pouco bobo — judeu chamado Brian Cohen (Graham Chapman), é notável a estupidez e ignorância dos demais judeus que o cercam, e até mesmo a do próprio personagem, sendo apenas mais um trabalhador oprimido pelo Império Romano. Acompanhar de perto o seu cotidiano é também acompanhar de perto a cultura de seu povo, a qual era deverás questionável em muitos de seus aspectos.
Brian (Graham Chapman)
Normalmente, parar para estudar e analisar uma sociedade na intenção de tentar descobrir e entender o que a torna subdesenvolvida é algo que requer um aprofundamento extremamente complexo e abrangente sobre diversos — ou todos — os fatores que à constitui; mas pelo incrível que pareça, notar o porquê de todo aquele povo judeu e romano parecerem ser constituídos inteiramente por estúpidos degenerados — talvez podendo até mesmo serem comparados com os atuais "bolsominions" — é extremamente nítido! A causa de tudo isso é o simples fato de que nada ali é realmente questionado.
Assim como Jesus era um profeta... Mendigos, trabalhadores e outros também poderiam ser; e pelo escasso — e talvez inexistente — acesso a informação, tudo que restava às pessoas era decidir se elas iriam ou não acreditar nas mensagens que estavam sendo passadas pelos denominados "profetas". Com base nisso, associar todo o resto é extremamente simples: sem informação as pessoas não tinham como aprender, e sem aprendizado elas não tinham como ensinar, e o problema está justamente no fato de que mesmo sem informação elas ensinavam, e pior que isso, eram os alunos que estavam ali "aprendendo" — ou sendo doutrinados, se preferir — a todas aquelas coisas sem questionar absolutamente nada. Aprendendo apenas falácias, especulações e simples e absolutas mentiras que eles tomaram como verdades pelo resto de suas vidas.
E não é preciso dizer como isso pode afetar negativamente uma sociedade. Vivemos em uma sociedade assim — constituída em sua maior parte por ignorantes — e sabemos como é deprimente encarar este fato. O conformismo e o senso comum são dois fatores que juntos podem dar poder de influência e fala até para o maior dos idiotas, e a maneira tão nítida como a de Terry Jones em nos passar essa mensagem através de um filme humorístico foi extremamente precisa e genial.
É irônico pensar que apesar de vivermos na "era da informação" ainda conseguimos cometer a proeza de ser ainda tão manipuláveis e mal informados como somos. Deixando nítido cada vez mais como o egoísmo pode de forma negativa afetar drasticamente a nossa sociedade; tanto partindo dos sujeitos que querem nos privar de informações como nós mesmos que não lutamos realmente por elas, e apenas nos conformamos com o sistema imposto e o conforto de nossas vidas. Algo que vem se mostrando cada vez mais destrutivo para nós e que mesmo assim continuamos parados, sem tomar nenhuma real iniciativa para um verdadeiro progresso social.
Como diria Sigmund Freud: "Quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda", e é triste admitir que esse pensamento está correto, e pior que isto, é o fato dele retratar perfeitamente a grande maioria das pessoas de nossa sociedade. Estamos conformados com nossa atual situação. A vida e o conforto dos indivíduos não está em risco, apesar de que, no momento em que está análise é escrita, estamos passando pela pandemia "gerada" pelo COVID-19, que sabemos na verdade ser apenas mais um dos fruto da ignorância humana. Algo que abalou profundamente a economia global e apresenta riscos reais para a humanidade. É extremamente preocupante pensar que apenas situações críticas como essa são capazes de nos FORÇAR a agir de forma mais consciente e responsável, se preocupando realmente com o futuro; só que também sabemos que todas essas precauções e cuidados que tomamos são passageiras, pois as mesmas tem origem de um sentimento totalmente individual, de garantir a sua própria segurança e seu próprio futuro, e não necessariamente o do próximo, ou de todos.
Enfim, como diria Camille Ferros do League of Legends: "Quando vem a escuridão, todos repentinamente enxergam a luz". A escuridão ainda não chegou, e ainda dá tempo de começarmos a caminhar ao ponto em que se torne cada vez mais difícil ela nos alcançar. Claro que essa tal de "escuridão" não passa de uma palavra um pouco mais bonitinha para representar a nossa ignorância; a nossa pior característica e também a que mais nos fez errar, regredir e matar, não apenas uns ao outros, mas também às imensas oportunidades que tivemos de crescer e evoluir.
Há vários e vários outros pontos que infelizmente não abordei sobre o filme e que abririam espaço para outras diversas e complexas questões sociais; mas apesar disto, a principal mensagem: uma sociedade ignorante e seus maléficos, que é basicamente a essência do filme, foi abordada! Então particularmente recomendo muito este filme, transmite não apenas uma, mas diversas verdades e mensagens que se soubermos refletir em cima e usá-las a nosso favor, vamos nos tornar indivíduos cada vez melhores e lúcidos em relação não apenas ao rumo da nossa sociedade, mas de todo o planeta em consequência da nossa ignorância.
“Esse
é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era bem assim. Só que ela durava
dois meses e o principal: o navio ia terminar em algum lugar. Na escravidão a
gente era tudo máquina, tudo máquina. Dai eles pagavam combustível e manutenção
para que a gente tivesse saúde para poder trabalhar de graça para eles. Agora
não. Agora é diferente. Agora a gente é escravo sem dono. Cada um aqui custa
uns 700 paus para o Estado, por mês. Isso é mais que três salários mínimos.
Isso diz alguma coisa sobre esse país. O que vale é ter liberdade para
consumir. Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia.”
+ Quanto Vale ou É por Quilo? (2005) de Sérgio Bianchi
Poster do filme
A fala apresentada acima é do
personagem Dido (Lázaro Ramos), que está em uma cela lotada,
evidenciando de maneira absoluta quais são as intenções do filme, que não são
nada agradáveis de se ver ou ouvir, ou melhor, de se perceber que essa é a
nossa realidade social.
CENA DA FALA INICIAL
Dido (Lázaro Ramos)
Impossível não fazer
relações com outras obras de Sérgio Bianchi, pois as relações desiguais e
violentas são exploradas em quase todos seus filmes, como Cronicamente Inviável de 2000, em que conhecemos uma análise também
destruidora da sociedade brasileira, que seria algo extremamente difícil de se
construir uma crônica, mas é o que Bianchi decide fazer com a obra, que já
começa de maneira diferente, mostrando uma cena na qual pessoas comem uma
comida que acabou de ser jogada no lixo por um restaurante, logo em seguida se
ouve uma voz: "não, isso está muito explícito, vamos refazer", mas o
filme não perdoa, apresenta assaltos, miséria, devastação do meio ambiente,
violência policial. Quanto Vale ou é por
Quilo? se mostra como uma nova tentativa de apresentar uma crônica social
brasileira, exercício também complexo, mas agora se concentrando nas relações
raciais herdadas do período escravocrata no Brasil.
Cena de Cronicamente Inviável
Conhecemos uma narrativa
costurada entre o século XVIII no Brasil colonial com a atualidade brasileira e
um discurso forte sobre como diversas relações de poder ainda se sustentam hoje,
o filme utiliza os mesmo atores no passado e no presente, evidenciando de
maneira clara como essa sociedade não conseguiu construir uma lógica de
cidadania, mas somente construiu novos espaços para exploração e lucro da
classe rica e branca sobre a classe mais baixa e negra. Entre escravocratas
sustentando a exploração e pessoas lucrando com a liberdade de escravizados no
período colonial, exibe um panorama atual em que conhecemos ONGs que, em seus
discursos, trabalham por lutar contra a desigualdade social, mas, na prática,
apenas sustentam a desigualdade racial brasileira, desde superfaturamento até
exploração de corpos negros. Construindo uma das bases do chamado "crime
perfeito" do antropólogo Kabengele Munanga, que diz em uma entrevista à Revista
Forúm em 2012 [1].
“Quando
a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995 [2],
perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais de 80%
disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: ‘você já discriminou
alguém?’. A maioria disse que não. Significa que há racismo, mas sem racistas.
Ele está no ar… Como você vai combater isso? Muitas vezes o brasileiro chega a
dizer ao negro que reage: ‘você que é complexado, o problema está na sua
cabeça’. Ele rejeita a culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de
crime perfeito? Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é
que é responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.”
Kabengele Munanga – Foto: U. Dettmar/SCO/STF FONTE: bit.ly/2XWaQ10
Nesse momento chegamos a
um entrave dentro da sociedade brasileira, como combater o racismo e a
desigualdade se não há culpados? Como questionar a falta de inserção social se
há tantas organizações que em seus discursos defendem tal bandeira?
Compreendemos então que Bianchi constrói uma narrativa consciente disso e evidencia
de maneira feroz como nós mesmo somos reprodutores dessa hipocrisia. Numa
sociedade em que as liberdades e a cidadania se resumem em direito ao consumo,
os negros e negras que foram libertos(as) em 1886 com a Lei Áurea, agora lidam
com uma sociedade estruturalmente racista, qualquer questionamento sobre a
desigualdade racial será um questionamento de como a sociedade se estrutura.
“Temos
cerca de 10 mil crianças abandonadas nas ruas. Se pegássemos os 100 milhões de
dólares, quantia estimada da movimentação financeira das entidades que atendem
os menores carentes e dividíssemos pelo número estimado de crianças, que são 10
mil. Cada uma delas receberia 10 mil dólares por ano. Com esse dinheiro seria
possível comprar um apartamento de quarto e sala para cada criança a cada dois
anos. Ou ainda pagar estudos em escolas da rede particular até a faculdade.”
Nesse momento vemos que a
desigualdade racial não é algo que está sendo combatido pelas entidades que
dizem combater, mas que na verdade se utilizam do racismo para poderem lucrar
com essa triste realidade. Assim como é apresentada na história da negociante
de escravizados(as) Maria Antônia do Rosário e da escravizada Lucrécia, que em
tese auxiliou Lucrécia a conseguir sua liberdade da família Pereira Cardoso,
pois do Rosário paga sua alforria, mas exige uma determinada taxa de juros por
ano em troca. Como conclusão vemos que Maria Antônia não buscava a liberdade de
Lucrécia, mas a "ajudou" apenas para conseguir seus lucros. Relato extraído do
Arquivo Nacional, RJ. Um relato extremamente semelhante na fala descrita acima
em nossa atual sociedade.
Lucrécia e Maria Antônia do Rosário
Nesse momento passamos a se questionar como uma sociedade democrática e dita cidadã. Mudamos? Nossas
relações de poder ainda são as mesmas? Os negros e negras possuem reais
possibilidades de inserção social? Tudo ainda gira em torno do lucro e do
consumo? É triste responder tais perguntas utilizando fatos históricos e reais
apresentados no filme.
Complementando a obra de
Bianchi, podemos citar o documentário A Última Abolição, 2018 de Alice Gomez em que vemos a fala do historiador
João José Reis [3]:
“Eu
vou dizer uma coisa que pode ser chocante. Os escravos estavam muito mais
protegidos do que os nossos jovens negros. Porque eles eram propriedade, eles
tinham que ser preservados, eles precisavam ser alimentados. Os senhores
brigavam quando a polícia batia nos seus escravos. Porque era deles, os
senhores, a prerrogativa de puni-los. Eles não queriam intervenção. [...] Hoje
os jovens negros não têm senhores para protegê-los. Não estou pregando o
retorno da escravidão, fique bem claro. Mas o que eu estou dizendo aqui é o que
acontece hoje é uma tragédia tão grande que nos permite fazer esse tipo de
comparação esdrúxula como eu estou fazendo. É uma calamidade.”
Talvez nossa função como
tertulianxs seja algo extremamente inviável ou que seja apenas para reconhecer
uma realidade triste da atual condição social brasileira. Mas devemos tentar
agir como o cineasta Sérgio Bianchi, mesmo que seja algo cronicamente inviável
ou extremamente difícil de reconhecer, ele fez. Nos resta reconhecer o cinema
como um espaço de conscientização, indo muito além da simples veneração pelas obras cinematográficas,
trabalhando debates sobre ética e responsabilidade para que nos tornemos
agentes conscientes dos impactos que o cinema pode realizar e não apenas um tipo de Maria Antônia do Rosário, em que
lucramos com a desigualdade racial e social brasileira.